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segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Ilha de Lost à espera de Godot

Há uns dois anos, em uma daquelas tardes escaldantes de Porto Alegre, chegava eu para minha jornada diária de trabalho na FM Cultura quando, mal havia entrado na sala, me avisam: "Tem reunião com o Presidente". O pessoal já se encaminhava para o prédio da frente quando foi informado do teor do encontro e seus participantes – pela primeira vez, desde que estou na Fundação ao menos, uma reunião era marcada com todos os funcionários da rádio na Presidência. Entre os presentes, estaria o responsável pelo marketing da Fundação Cultural Piratini, que iria expor seus planos para a Rádio. Dirigimo-nos, então, à sala da Presidência.


Em lá chegando, apresentou-se o consultor de marketing, que trazia no currículo passagem anterior pela casa. Introduziu sua pauta: "Eu sei que vai dar polêmica, mas insisto: a rádio precisa mudar o perfil, pois com esse modelo atual, mais cultural e ‘avesso ao mercado’, fica difícil vender qualquer coisa". Alguns colegas tentaram – como da outra vez em que o consultor passou pela Fundação – argumentar que o tal modelo a que se referia está mais do que consolidado, que "a rádio precisa é de mais visibilidade, temos um público fiel, precisamos é de apoiadores, de ações externas, o nosso nicho, não tem sido explorado por ninguém, então está aí o diferencial, se mudarmos o perfil, perderemos nosso público e não conquistaremos ninguém ...", ao que o consultor interrompeu: "pronto, eu sabia que ia dar nisso". E continuou: "sou o maior especialista em marketing de rádio no Brasil, amigo pessoal do Carlos Augusto Montenegro, presidente do Ibope, ...". Fiquei na minha, mas pensei: "ué, mas se o cara é tem esse cacife todo, não deve ser difícil elaborar um plano que possa dar mais visibilidade à nossa rádio, que tem seu público cativo, a única emissora a tocar MPB de qualidade hoje, das novas tendências aos clássicos, da música urbana gaúcha às novidades do rock feito aqui, da música campeira à música instrumental". A reunião não foi muito além disso, argumento daqui, contra-argumento de lá, então preferi esperar, pra ver o que aconteceria. E ficamos todos, enfim, até o final da (segunda) estada do consultor esperando, esperando... tais quais Estragon e Vladimir: esperando Godot. Corta para duas semanas atrás.


Jantávamos em minha casa eu, minha mulher e um casal de amigos. O rapaz, publicitário, várias vezes me havia referido sua admiração pela programação da FM Cultura, inclusive pediu-me que lhe gravasse um CD com músicas de Ná Ozzetti, Luiz Tatit... "músicos importantes, parte da história da MPB, e que só tocam na tua rádio". Fiquei feliz e lisonjeado, óbvio, mas não surpreso: a predileção por música popular brasileira de verdade – não aquela que as gravadoras empurram, muitas vezes via jabá, para as emissoras comerciais -, só é desconhecida por gente que não têm por hábito conversar, trocar uma idéia, freqüentar, interagir. Entre outras coisas, é por isso que André Midani, Nélson Motta e outros ex-executivos fazem falta hoje no universo das (falidas) grandes gravadoras, e que Chico Buarque, Maria Bethânia, Alceu Valença, Djavan, etc. têm migrado para as independentes: gente com imaginação, que antevê caminhos a seguir e valoriza a sensibilidade do consumidor e a inteligência de quem é do meio, foi trocada por burocratas, que amam os números e ... são freqüentemente traídos por eles, pois estes, por si só, não indicam tendências. Me dizia o amigo, então: "o público de vocês é classe A, pequeno mas fiel, o que consome cultura: vai a cinema e conhece a obra dos grandes diretores; vai ao teatro; compra livros não só em tempo de Feira – compra e lê, diga-se de passagem; conhece música clássica e sabe quais são as grandes gravações, as grandes orquestras, ...", ao que o interrompi: "é, mas numa gestão recente, cortaram drasticamente a música clássica por entenderem que esta seria ‘muito elitista’". Ao que meu amigo respondeu, incrédulo: "mas eles não percebem que a rádio de vocês não têm que fazer concessão em termos de qualidade? Que o público de vocês não se contenta com qualquer coisa?". E completou: "vocês não têm que competir com as grandes, mas serem fortes no seu nicho. Há um público ávido por este tipo de consumo – não se fala em consumo de luxo, hoje em dia? Por que não falarmos então em consumo de produto cultural diferenciado? Olha o sucesso da Livraria Cultura em POA, olha o caso da revista Bravo, que vende mais aqui do que em qualquer outro lugar ... Claro que não é pra muitos – mas trata-se de um público com alto poder aquisitivo, que não vê outras opções além da rádio de vocês no dial". "É uma barbada anunciar na rádio de vocês, o que tá faltando é visão", finalizou. Corta pra semana passada.


Sexta-feira última, acho, abro o Coletiva e dou de cara com um artigo comparando a Fundação Cultural Piratini à Ilha de Lost, o seriado – do qual sou espectador, aliás. Antes mesmo de ler o texto, confiro o nome e a função do escriba, "Consultor em Marketing". Ele mesmo, nosso ex-colega da Fundação. Entre outras coisas, argumentava em seu texto, que na TVE "há os concursados e os outros", referindo-se a um suposto clima de animosidade entre os "grupos". Ou seja, o velho papo de que há uma espécie de "Comando Vermelho", do martelo e da foice, disposto a "fazer a revolução" contra os representantes do governo no Morro Santa Tereza. Maior bobagem, impossível. O clima na Fundação sempre foi o melhor possível entre CC’s e concursados, esta rivalidade que o sr. consultor coloca é pura ficção, que só pode encontrar eco na cabeça dos paranóicos – embora seja, na verdade, factóide grosseiro. Posso falar por mim: entrei na Fundação à época do último concurso, em 2002 (gestão do PT), como poderia ter entrado no anterior, no final de 1994 (governo Collares), quando também passei em 1º lugar para Programador Musical da Rádio. Ninguém foi chamado pelo governo seguinte – ou poucos o foram, não sei -, então tive de esperar o próximo concurso. Não tenho ficha em partido algum, nem tampouco pauto minha conduta por suposta cartilha ideológica (sempre achei a ideologia redutora, limitadora), como todos os funcionários da casa que conheço – aliás, a afirmação do sr. Glauco de que "a estação de TV... foi estufada de petistas por Olívio" esconde a insinuação de que o resultado do concurso de 2001 teria sido fraudado? Quero crer que não foi essa a intenção do nobre consultor em seu texto. E quanto aos CC’s, só posso dizer que entre as boas amizades que fiz na casa nestes quase sete anos, estão Léo Felipe, apresentador do Radar, e a Tatiana Forster, apresentadora do Jornal da TVE, ambos CC’s. Este clima de rivalidade por ora anunciado, quase um Gre-Nal entre torcidas organizadas, é absurdo. Duvido que os "macacos velhos" (com todo o respeito) Pedro Macedo, Machadinho, Airton Nedel se sintam "combatidos" como querem fazer crer estes comentários de uma suposta divisão de grupos na TVE. Assunto que, vez que outra, vem à baila neste espaço – até minha amiga (acho que posso chamá-la assim) Maristela caiu nessa conversa. (De qualquer modo, não deixa de ser curioso como estes rótulos ideológicos pegam em cheio nas pessoas, à revelia de sua vontade: tempos atrás, o presidente do Sindicato dos Radialistas, Antônio Édisson Peres, o famoso Caverna, referiu-se a mim como um cara legal "apesar de não conjugarmos das mesmas idéias políticas", o que interpretei como "o cara é gente boa, mas vota pro lado de lá". Imaginava, o Caverna, que, por conhecer meu pai, presidente das Empresas de Radiodifusão do RS por um bom tempo – "patronal", portanto -, estaria eu "do lado de lá". "Não tenho lado nenhum", lhe respondi, "sou Fundação Cultural Piratini Futebol Clube, só. O velho Noé tem as idéias dele, eu, as minhas – e política, definitivamente, não está entre as minhas paixões".)


Mas retomando o texto do consultor, o que espanta é que o ex-colega, além de cuspir no prato em que comeu, ainda tem a coragem de tentar atingir a honra dos funcionários, que há décadas lutam, às vezes sozinhos, para manter de pé a Fundação. Também não entendi por que demonstra tanto desprezo por uma casa pela qual passou duas vezes. O curioso é que teve a oportunidade – por duas vezes, repito – de ajudar a reverter o quadro "sombrio" (as palavras são suas), mas em ambas disperdiçou-as. Não vá dizer que "os outros" sabotaram seu projeto. Currículo para tanto, inclusive, não lhe faltava - pelo menos é o que ele garante. Uma pena. Torço para que tenha amplo sucesso profissional em qualquer empreitada que venha a se engajar e que não seja obrigado a voltar à Ilha de Lost que tanto despreza – e que nós, funcionários tanto amamos, de coração –, por uma terceira vez. Como a Kate do seriado, que na próxima temporada, ao que tudo indica, vai ser convencida pelos demais saídos da ilha a ter de voltar por não ter outra alternativa.

José Fernando Cardoso é jornalista e programador musical da rádio FM Cultura.
12/12/2008
Fonte: Coletiva.net

Um comentário:

KahrlaNy disse...

A TVE e FM Cultura são fonte de informação do Rio Grande para o povo que aqui vive. Dois excelentes veículos de comunicação. Talvez não rendam dividendos diretos mas rendem cultura, informação e educação.
O atual governo não tem esta opinião, o desrespeito a representação recebida é a sua marca e a sensibilidade passa distante da atual governadora. A postura de desinteresse pela Fundação Piratini é de profundo desrespeito ao povo gaúcho.
Karla Nyland